Estórias de Ferreira

Chamo-me Rui Antunes, sou de Ferreira do Zêzere e gosto de estórias... reais ou imaginárias, estórias da vida, de sucessos ou insucessos, prometo partilhar as minhas, espero pelas vossas...

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27.2.06

A nova mesa de mistura


Estava a rever umas fotos antigas da rádio, que o José Lourenço me enviou quando reparei na mesa de mistura, que naquela altura era nova. Veio-me à memória o episódio da estreia oficial daquela mesa, que à semelhança de um barco quando vai ser largado pela primeira vez à água, teve direito a um brinde especial.
Naquela época, numa rádio que sobrevivia com muito pouco e com muita carolice, era com enorme dificuldade que se comprava equipamento novo, digamos que isso era praticamente impossível e o que acabava por acontecer era o aproveitamento de equipamentos antigos e peças usadas para refazer os existentes, era assim, que habilmente se mantinha operacional a rádio, com o ferro de soldar e muita capacidade de improvisar. Mas daquela vez tinha sido diferente, um esforço dos responsáveis, que naquela época era um trio composto pelo Sérgio Morgado, Capitão Azevedo e José Carvalheira, tinham tornado possível a compra de uma nova mesa de mistura, com inauguração cirugicamente prevista para o aniversário da rádio (sim porque equipamento novo era sempre estreado numa data importante), estávamos todos radiantes, por fim íamos conseguir por de lado a velha mesa, cujos potenciómetros já tinham sérias dificuldades em responder convenientemente.
Foi montada a mesa e preparada uma emissão especial, que reunia todos os colaboradores e responsáveis que se conseguissem aconchegar dentro do estúdio, 3 ou 4 pares de auscultadores serviam para fazer a monição e 2 microfones davam voz ao programa. Naquele dia o homem que ia estriar a mesa era o Bruno Silva, era ela que comandava as operações, da mesa saiam os vários cabos de auscultadores que desalinhados se cruzavam por cima da bancada até aos ditos, e como se tratava de um dia especial, uma emissão de aniversário, alguém se tinha lembrado de trazer umas latas de cerveja para o pessoal, e lá estávamos todos, reunidos, sentados em redor da nova mesa de mistura a emborcar umas cervejolas e a fazer um programa de entrevista em directo, em amena cavaqueira ao microfone, diga-se que a coisa até estava a correr bem. Foi nesse momento, quando nada parecia poder falhar que alguém puxou um dos auscultadores, o cabo esticou, uma lata de cerveja pousada no meio dos cabos tombou e o liquido sem aviso invadiu a nova mesa de mistura, entrando por tudo quanto era buraco, foi o pânico, o Bruno Silva deu um salto da cadeira e tirou as mãos da mesa com uma rapidez extraordinária com medo de um possível choque eléctrico, ficámos todos sem reacção, o Carvalheira foi direito ao botão e desligou a alimentação evitando que os estragos se alargassem.
A emissão ficou muda e nos rostos, a euforia de minutos antes transformou-se em frustração, foi realmente muito mau, escusado será dizer que novamente tivemos de usar a nossa capacidade de improvisar para resolver o problema, a mesa antiga tinha fichas diferentes o que dificultava a coisa, então fomos buscar uma mesa mais antiga, foi a primeira que a rádio teve e colocámos no ar a emissão, nos dias seguintes o Carvalheira desmontou a mesa nova peça por peça e secou tudo muito bem com um secador de cabelo, voltou a montar, lubrificou os potenciómetros tendo acabado por conseguir recuperar o equipamento, não a 100% mas dado o estrago sofrido digamos que não ficou nada mal.
A lição deste episódio foi : “se vai para o estúdio não beba”

24.2.06

A “geminação”



Fui ontem ao Alentejo, tinha uns trabalhos a fazer em Beja e em Sta Margarida do Sado (sim, a terra das meninas... da ribeira do sado que têm carrapatos atrás das orelhas, apesar de eu nunca ter visto nenhum). Cheguei a Beja a ouvir o rádio do carro a anunciar as noticias da 1 da tarde, hora de almoço portanto.
Estava ainda a pensar onde estacionar para ir almoçar quando me lembrei da minha amiga Mariana Casado, alentejana de gema, alma ferreirense de Ferreira do Alentejo mas a trabalhar em Beja, já não sabia muito bem onde até porque já não a via pelo menos à quatro anitos. Peguei no telefone e mandei-lhe uma mensagem : “Pagas o almoço ?”, não tinham passado ainda 2 minutos e já o telefone tocava, atendi e lá estava a Mariana... “es mesmo tu ? estás cá em Beja ? claro que pago o almoço, vem ter comigo ao Governo Civil...”, ora estava eu longe de imaginar que a minha amiga Mariana era acessora do Governador Civil de Beja, mas é mesmo. Fui almoçar com ela, comemos uma bela feijoada da marisco num restaurantezinho ali perto que se chama “Tem Avondo”, muito agradável, com uns molotof’s na montra de aspecto delicioso.
Fiquei a saber que depois do trabalho no Governo Civil ainda continuava a fazer rádio, é a animadora das tardes da Rádio Pax de Beja e ainda consegue arranjar tempo para ser coordenadora do INATEL no distrito, é mesmo assim a minha amiga Mariana, não consegue estar parada.
Conheci a Mariana há cerca de 10 anos, digamos que é uma amizade fruto da geminação existente entre Ferreira do Zêzere e Ferreira do Alentejo, uma ligação iniciada pelo já falecido Padre Alcobia, ferreirense de Ferreira do Zêzere, mas que encontrou o seu rebanho na outra Ferreira, a do Alentejo, um amante da cultura popular foi em conjunto com o nosso Padre Artur, o responsável por iniciar os encontros anuais entre ferreirenses que mais tarde deram origem à geminação. Para quem não sabe esses encontros realizam-se anualmente, ora em Ferreira do Zêzere ora em Ferreira do Alentejo, são normalmente compostos por uma cerimónia religiosa, um ou outro protocolo autárquico e termina sempre com uma bela tarde cultural onde participam os grupos tradicionais dos dois concelhos.
Num dos primeiros encontros em Ferreira do Alentejo, eu, o Nuno Cunha, o Armando Cotrim, malta que na altura se costumava encontrar na rádio aos sábados à noite no fim do meu programa em verdadeira tertúlias de anedotas, decidimos que também tínhamos de ir lá, participar na dita geminação, que nesse ano era em Ferreira do Alentejo e então combinámos não ir nos autocarros mas ir de carro. Naquela manhã, acordámos cedinho, fizemos o farnel e lá fomos, estrada fora até Ferreira do Alentejo.
Claro que chegámos cedíssimo, o autocarros foram nas calmas e o Fiat Punto, foi na ponta da unha até à planície alentejana, quando chegámos demos a volta em 20 minutos e descobrimos que aquilo era quase tão pequeno como Ferreira do Zêzere, ficámos a olhar uns para os outros e pensar “e agora? Fazemos o quê ?”, foi aí que alguém teve uma ideia peregrina, “... isto deve ter uma rádio... vamos até lá conhecer o pessoal...”, foi dito e feito, perguntámos no primeiro café onde era a rádio, “...é logo ali podem ir a pé, não tem nada que enganar, sigam estrada acima até ao cemitério, é uma casa do lado direito, vê logo a antena lá ao lado...”, desconfiados do “é logo ali podem ir a pé”, que no alentejo pode significar quilómetros, metemo-nos no carro e lá fomos, batemos á porta e veio abrir, a Cláudia, irmã da Julieta e da outra Mariana, amigas da Mariana Casado. Era ela que estava de serviço ao microfone naquela manhã de domingo, mostrou-nos a rádio, ficou radiante pala visita e disse logo que não podíamos ir embora sem conhecer o resto do pessoal. Ora e quem é que disse que nós íamos embora, claro que não íamos, então nós, que fazíamos parte de uma rádio com uma equipe apenas masculina, tínhamos encontrado uma rádio que era exactamente o oposto, aquilo era o paraíso, estávamos prestes a descobrir a verdadeira essência do significado de geminação. Ficámos por lá, conhecemos a Cláudia, a Julieta, a Mariana e a Mariana Casado, fizeram questão de nos mostrar a vila, fomos almoçar com elas e foi já com saudades que no fim do dia lhes dissemos adeus... claro que, não sem antes deixarmos combinada outra visita, que eu e o Nuno Cunha prontamente fizemos e a qual eu contarei um dia destes.
Eu voltei a ir a outras “geminações”, quase sempre encontrei a Mariana Casado, ora na rádio ora a apresentar a tarde cultural, as irmãs nunca mais as vi.
Ainda esperava no Governo Civil pela Mariana para irmos almoçar quando ela me disse, vou ligar à Julieta... “...estou Julieta, não imaginas quem está aqui comigo... vê se adivinhas pela voz...” passou-me o telefone quando eu disse Ferreira do Zêzere ela lembrou-se de imediato de mim. “... tens de vir cá beber um café, passa por aqui...”.
A Julieta continua a ser animadora da Rádio Singa, os estúdios são no mesma casa ao lado do cemitério, apenas a antena e o emissor, fruto de umas obras que fizeram no local tiveram de mudar de sitio.
Acreditem que foi muito bom, ao fim de todo este tempo, rever a Julieta e trocar dois dedos de conversa intercalada com um belo café de sabor alentejano já no regresso a Lisboa...

22.2.06

A minha primeira bicicleta



Como a rapaziada da minha idade, também ou tive uma bicicleta, ou melhor, tive duas, uma primeira que o meu pai me comprou, onde eu aprendi a dar as primeiras pedaladas e que nos primeiros tempos estava no sótão do meu avô, nunca percebi muito bem porquê, mas o meu pai achava que era perigoso eu andar sozinho na rua (que das courelas devia ser a menos movimentada).
Às vezes nos intervalos dos TPC, ia até ao sotão, como na maior parte das casas antigas era de soalho, com umas escadas de madeira que lhe davam acesso e tinham um patamar a meio onde estavam umas arcas de madeira, uma onde era guardada a loiça menos usada e a outra, uma pequenina era a arca do pão, o sótão não era muito cumprido mas dava para dar pelo menos 2 pedaladas seguidas. Foi num desses exercícios estonteantes que dei o meu primeiro tombo de bicicleta, foi justamente quando passava junto ao alçapão da escada que perdi o equilibrio, ou seja a bicicleta parou e eu, como não chegava com os pés ao chão, tinha que deixar tombar um pouco para me apoiar, mas eis que quando a dita parou, resolveu tombar logo para o lado do alçapão... e lá fui eu a voar escada a baixo com os punhos cerrados a bater nas esquinas dos degraus, com a bicicleta atrás de mim a seguir-me a toda a velocidade, foi uma descida rápida até ao patamar, onde estavam as arcas e onde eu fiquei a olhar para cima com a bicicleta a bater fortemente nas arcas que me protegeram de levar com ela em cima... nunca desci tão rápido aquelas escadas.
Depois desta aventura a bicicleta veio definitivamente para a loja, para o lado da velha Zundapp Turbina do meu pai, também ela digna de algumas histórias aqui no blog, fica para um dia destes.

José Sebastião




texto de Pedro Aniceto (primo)
http://caoepulgas.blogspot.com




José Sebastião. Mais um dos meus referenciais imaginários que se apaga numa já longa fila que a pouco e pouco me dá a consciência de que já estive mais longe do momento em que alguém me dedique umas linhas à laia de obituário. José Sebastião não morreu. Mas vive, se é que lhe podemos chamar viver, uma complicada e oxalá que não lúcida antecâmara entre o estar e o ter sido. José Sebastião nunca foi um amigo do peito. Separavam-nos nos momentos de maior possibilidade de convivência demasiados anos para que dele pudesse ser cúmplice. Mas foi-o, à sua maneira. Quando eu, de calções e camisas ridículas me abeirava do grupo de homens feitos que tibornavam caldas e mostos, e ainda demasiado jovem para poder fazer parte do ritual, e me dizia "Então Pedro, não bebes um copo?", mais do que um chiste era quem sabe um teste iniciático. Um teste, que passou muitas vezes pela tira de presunto ou pela fatia de queijo, muito antes do copo de vinho. José Sebastião. O homem que durante os meus tenros anos me impressionava pela terrível profissão que desempenhava, a de ser formalmente o coveiro da freguesia, está agora a pouco tempo de ser conduzido ao primário torrão. Dirão que é a lei da vida. Dirão que nada se pode fazer senão enfrentar com naturalidade a ordem natural das coisas. Uma merda! Ninguém merece um final agonizante como o que este homem é obrigado a sofrer. Ninguém. Muito menos o homem que me emprestou a sua preciosa Fundador, roda 26, para a qual eu tinha de subir do cimo de um cepo, sujeito a partir as ventas, e quem sabe
outras peças mais da sua preciosidade azul. Deixa-a no mesmo sítio. E o mesmo sítio incluia uma delicada operação de limpeza aos cromados, a verificação meticulosa da caixa de reparação de furos, que incluia dois "desmontas" um tubo de Tip Top e dois gloriosos remendos por estrear. Creio que te abri a caixa dos "desmontas" apenas uma vez, apenas para verificar a razão de tanto cuidado e carinho com uma bicicleta do tempo dos Afonsinhos. E mesmo quando um AVC te fez ficar imóvel, retido numa cama, mas sem te retirar do cérebro a capacidade de reconhecer os que te rodeavam, a pergunta foi sempre a mesma "Vais buscar a bicicleta para dar uma voltinha?". Os anos foram passando e nunca te esqueceste. Os anos foram-te mirrando e nunca me esqueceste. Há 6 meses, numa curta visita avisaram-me de que o cenário era o pior. Que não reconhecias ninguém. Que estavas francamente mal, confuso, ausente. Foi preciso apertar-te a mão, esperar largos segundos, olhar-te num olhar baço, o meu de emoção, o teu da névoa que te tolda a mente, para que sentisse no teu aperto a certeza de que sabias que era eu. O Pedro, o miúdo que cresceu e que deu lugar a outros miúdos. Um gemido, um esforço de fala entaramelada e ter-te ouvido, perante o espanto dos presentes, dizer em sussurro "Pedro, a bicicleta...". Sorrimos todos, até tu, penso eu. Hoje, ao entrar-te quarto adentro, na esperança de mais um pequeno milagre, não contive a angústia de ter ver e de me recordar de mais alguns que já partiram envoltos nas mesmas brumas. Alguns que foram teus amigos e que te esperam para outras tibornas e outros mostos, para outras perguntas de "Vai mais um copinho?". Hoje não consegui que reagisses, creio que nunca reagirás. Não que o queira crer. A existir um paraíso para ti que tenha bicicletas, com caixas de "desmontas" e remendos. E cola Tip Top. E miúdos a quem possas fazer a gentileza de ensinar que o que se empresta deve ser devolvido nas mesmas condições.

A sombra



texto de Pedro Aniceto (primo)
http://caoepulgas.blogspot.com





Aprendi com o meu avô, que aprendeu com o avô dele, que por sua vez terá aprendido com dezenas de outros avôs pela escadaria do tempo acima. Das muitas coisas que, voluntária ou involuntariamente me ensinou é a de que os animais se enterravam em locais com sombra. Nunca mo disse, nunca lho perguntei, mas foi sempre assim... Não me perguntem a razão da sombra que não sei explicar, nem me lembro quase da primeira vez ou das vezes dos múltiplos desgostos pela morte mais ou menos natural dos meus animais de estimação ou de outros que não de estimação, mas que eram uma mais valia para a economia familiar de então. O último funeral à sombra foi o de um coelho-anão, um simpático bicharoco por quem eu não nutria uma simpatia por aí além e que, ou muito me engano era recíproca dada a sua predilecção por pernas de cadeira, coisa com que eu, muito engalinhava.
Narrava eu que, munido da necessária enxada me decidi abrir-lhe um túmulo debaixo de uma figueira nas traseiras da casa e, se bem o pensei, melhor o fiz (fora o pormenor do cabo da enxada se ter desencavado, mas isso é para outra história...) à sombra como manda a tradição e lá ficou o bicho para o pó dos tempos (do pó vieste ao pó regressarás, isto devia ser uma máxima inscrita num portão do Casal Ventoso) mas não, é apenas uma figura de estilo que obrigatoriamente empurrará as vossas entradas no Diário também elas para o pó dos tempos, socorro, dêem-lhe um ponto final ou o homem morre já aqui, que nem está sol nem nada e toda a gente sabe que títulos como Morte ao Sol estão reservados ao Sergio Leone. Lá ficou. Ponto. Tudo isto para pegar de novo no fio da história e ter percebido no Domingo ao lusco fusco um outro enterro se fazia debaixo da mesmíssima figueira. Aproximei-me a pretexto de segurar o cão que farejava com afã (fosga-se que esta demorou a encontrar...) a caixa do animal defunto e a dona que entre soluços lhe cavava a última morada. A dona do animal estava acompanhada por um miúdo, quem sabe se cúmplice de patifarias a gatos. O miúdo chorava também, quem sabe se um iniciado na arte das dores do desgosto animal. Há que respeitar a dor dos outros, seja a perda grande ou pequena, animal de quatro ou de duas patas e num rapidíssimo diálogo apreendi que o defunto era um gato e que o desfecho tinha sido rápido devido à violência do embate. Duas badaladas e um balde de cal, metáfora estúpida, trata-se de um gato, nada mais do que isso, não era Persa, não era sequer o Xá. Morreu enterre-se. "O senhor sabe, por acaso, de que lado dá o sol nesta figueira?". Cumpre-se o eterno saber das coisas não aprendidas e saí de cena com um sorriso nos lábios, a lembrar-me de outros tempos, outros avós, os mesmíssimos saberes. O puto, esse
continuou a chorar e a jogar Pro Soccer no GameBoy...

21.2.06

O Borda d'Água





Texto de Pedro Aniceto (primo) http://caoepulgas.blogspot.com













Comprei a edição 2004 do Borda d'Água. Peço aqueles que não fazem a mínima ideia do que seja esta publicação a santa paciência de me escusarem à explicação. Direi apenas que é uma das mais antigas publicações do país, e sem dúvida alguma, aquela que mais penetrou em camadas da população que muitas vezes nem sequer sabiam ler, ou se o sabiam, que o faziam com enorme dificuldade. O Borda d'Água é um Almanaque (começa a irritar-me esta coisa da etimologia árabe, principalmente desde que deparei com o Al Jareau...), dizia eu um Almanaque capaz de conter uma resenha essencial às mais singelas manobras que digam respeito à agricultura. Queres saber quando transplantar os agriões, fazer a cama quente aos pepinos, cavar as leiras de couve, armazenar forragem ou exterminar os caracõis? Compras o Borda d'Água e ficas a saber! Queres saber qual é o Santo do dia 13 de Novembro? Consultas o Almanaque. A que horas se põe o Sol no Porto num determinado dia? Idem.
Raramente necessitei dos seus sábios ensinamentos e mesmo quando issoaconteceu torneei as dificuldades com um telefonema a um "expert" agrícola. Precisava saber quando podar a minha cerejeira, que cresce há dois anos no meio do meu jardim. "Poda-a em Janeiro, mas não faças se estiver o tempo muito frio". Agora, quando desfolho o Almanaque não deixo de sorrir quando leio no mês de Janeiro, que é tempo de podar figueiras, macieiras e cerejeiras, mas que, no caso destas últimas, será melhor adiar a tarefa se o tempo se manifestar demasiado frio. Eu sabia que as hipóteses de o meu "expert" ter lido o Almanaque eram generosas, mas não tão grandes. O Borda d'Água acompanha-me desde que me lembro de mim mesmo. Era eu criança e era fatal que num dos primeiros Domingos do ano, aparecesse no adro da Igreja de Paio Mendes (Concelho de Ferreira do Zêzere) o habitual vendedor de Almanaques. A minha mãe, Fernanda, ou a minha tia Lourdes deviam estar, secretamente instruídas de comprar um exemplar , que guardavam ciosamente nas respectivas malas cujo conteúdo era, regra geral, um mistério para mim. (Aliás, ainda hoje me interrogo porque carregavam o ano todo uma caixinha de pó de arroz, quando nunca as vi usar tal produto...). Seja como for, o pó de arroz acrescentava ao interior das malas de senhora aquele cheiro tão especial que fazia do mistério uma aventura sensorial. Sacar, à socapa (sempre à socapa) um terço de contas pretas, de uma mala que cheirava a pó de arroz, borrifar-me com umas pingas de Água de Colónia, devia ser um desporto nacional naquela casa... O Borda d'Água vinha, como disse, ciosamente guardado até casa, onde era entregue ao meu avô, pessoa pouco dada a actividades de carácter religioso. Os momentos passados no adro da Igreja eram autênticos "blogs" sociais, onde se faziam anúncios de superior interesse comunitário, se finalizavam negócios de última hora, quase sempre selados com um aperto de mão e um copo de tinto na taberna próxima. Podiam mesmo apalavrar-se compras de adubos ou rações, era o Forum da aldeia, como aliás o é ainda hoje se colocarmos à devida proporção da época, a ausência de telefones e outros sofisticados meios de comunicação. Mas voltemos ao Almanaque e ao meu avô. Então, tal como hoje, o Borda d'Água não vinha acabado, isto é, os planos impressos, vinham singelamente dobrados em 4 e era ao leitor que cabia necessariamente a tarefa de acabar de cortar as páginas, o que sucedia imperativamente na mesa da cozinha, a mesma que, ainda hoje está recoberta daquilo que foi um linóleo centenário (talvez seja um exagero, mas não andará longe da verdade, como ainda há dias pude pessoalmente constatar...). Saía da sua bainha a "faca dos porcos", a faca mais afiada de que dispunha a casa do Olheiro, instrumento de matador de suínos, tarefa a que Joaquim Nunes se dedicava uma ou duas vezes por ano, dependendo do número de exemplares que pereciam na banca de madeira e que forneciam a arca do sal para o resto do ano. Um dia, se houver tempo e arte, falarei deste ritual, que, quase abandonado nos seus rituais, marcou dezenas de gerações de portugueses entre os quais me incluo humildemente, pois dele participei, com gosto, inúmeras vezes. Mas dizia eu que a "faca dos porcos", empunhada por mão firme, acabava de cortar as páginas do Borda d'Água para que finalmente pudesse ser desfolhado. Haveria de ser guardado sob a forma de um canudo, na grade da louça, que ainda hoje se impõe na velha cozinha das Courelas. Joaquim Nunes (Joaquim do Olheiro, para a generalidade das pessoas), não tinha propriamente um trato fácil. Teimoso como poucos (aliás, advém dele grande parte da herança genética familiar e não me parece que sejam necessárias grandes análises para me certificar disso mesmo...). Era habitual vê-lo a manifestar alguns acessos de fúria ou ocasional má disposição em afirmações lapidares como "Rai's te nunca partisse" ou o tradicional e escutado até à exaustão "Tá quêdo!". Recordo-me de ou ouvir barafustar sobre o preço de uma das edições, 5 tostões. Aos olhos da minha idade, o meu avô era rico. Lembro-me de ter pensado que de cada vez que lhe via abrir a carteira, no final das férias de Verão, para me presentear com uma azulíssima nota de 100 Escudos, não fazia sentido barafustar contra um preço de 5 tostões. Lembrei-me de Joaquim Nunes, quando estando eu em Oeiras, vi entrar no café de bairro o vendedor de Bordas d'Água e lhe pedi um. Quando perguntei o preço e me disseram "Um Euro e dez", quase ouvi Joaquim Nunes a barafustar de novo: "Rai's te nunca partisse".

20.2.06

Os rádios dos meus avós



Comecei a ouvir rádio muito cedo, era em casa, nas Courelas um pequeno lugar de Paio Mendes, que junto ao velho transistor a pilhas do meu avô, o Joaquim do “Olheiro”, que ouvia os sons mágicos que saíam de dentro daquela caixinha. Fazia-me confusão, ouvir as vozes dos “senhores” que falavam, como era possível ? como estariam pessoas dentro daquela caixa tão pequena ? era um mistério e por mais que tentassem explicar-me que não estava lá ninguém, que essas vozes vinham pelo ar e entravam pela fina antena metálica que apontava para o céu a verdade é que isso não me entrava na cabeça.

Fruto da minha curiosidade, acabei por descobrir a rodinha que permitia mexer o ponteiro vermelho que se movimentava ora para a esquerda ora para a direita, provocando uns ruídos esquisitos que, sempre que se acertava na frequência, se transformavam em mais música, mais conversa, nessa altura eu ouvia quase sempre a Rádio Renascença ou a Antena 1, as piratas ainda não existiam e o meu avô também não me deixava fazer grandes “avarias” com o aparelho.

O outro meu avô, o Joaquim “resineiro” da Levada, também tinha um rádio, mais velho, era um TELEFUNKEN alemão, que funcionava a válvulas e ainda não tinha Frequência Modulada, era só o AM (onda média) e SW (onda curta) que permitia descobrir outros sons.

O meu pai contava as estórias das proezas do Alberto (relojoeiro), rapaz da mesma geração, que cedo se interessou pela electrónica, sendo essa ainda hoje a sua actividade profissional. Ele teria usado as peças de dois rádios para construir um pequeno emissor, colocando a antena em cima de uma pinheira e de lá ia falando ao microfone numa emissão que o meu pai e os meus tios escutavam no velho telefunken: “alô alô, aqui fala da cova da raposa...”.

15.2.06

A mística do S. Brás



Publico aqui um texto que mandei ao João para publicar (se conseguir) no Despertar do Zêzere desta quinzena, mas como acho o tema interessante, gostaria que se pronunciassem sobre ele, a foto é do "Templário" :


"Confesso que já fui tarde para a feira de S. Brás, já passava das cinco quando a Maria (a mais pequena) acordou da sesta de domingo, mas foi com algum entusiasmo que, para ver os cavalos, lá se despachou para irmos dar a tal voltinha prometida à feira. Apesar dos cavalos já terem debandado, ainda existia por lá muita animação, as barraquinhas ainda iam fazendo negócio e apesar do frio que já começava a fazer-se sentir, as pessoas andavam alegres, a ver as pequenas maravilhas que esta feira “mostra” já nos habituou a apreciar... Ah pois, e as concertinas ainda iam dando o ar da sua graça com o seu som característico, que em conjunto com os acordeões lá iam animando a (muita) malta que não arredava pé da Feira de S. Brás.

Esta é uma feira especial, não se vêm feirantes de megafone a vender as T-Shirts e as camisas “de marca”, não andam por lá os vendedores de cassete pirata (agora já é mais o CD) nem se vêm as carrinhas que vêm “directamente da fábrica”, onde se leva o “cobertor e mais um faqueiro e uma caixa de ferramentas para o automóvel e ainda uma caixa de caramelos por apenas uma notinha de 20 €”. É uma feira diferente, ou melhor, é uma feira de antigamente onde se vende o artesanato, onde as tasquinhas ganham animação e onde se aproveita para mostrar aos visitantes, os trapos, as tralhas, as relíquias que muitas vezes estão lá num canto esquecidos e aos quais quase não se dá importância.

Ainda trago bem viva na memória a primeira recriação desta feira, foi com uma grande expectativa que na rádio recebemos esta noticia, na altura eu era responsável pela programação e quando reuni com os colaboradores para discutir a programação do mês, achámos que seria oportuno darmos uma grande cobertura ao acontecimento, foi feita uma promoção na semana antes e aliámo-nos à iniciativa no próprio dia montando um estúdio móvel no centro da feira, que funcionou na sede da filarmónica. Criaram-se duas equipes de exteriores que de microfone em punho faziam o relato do que iam descobrindo nas várias barraquinhas, entrevistando os artesãos que lá iam descrevendo como faziam a sua actividade, desde o tanoeiro, ao cesteiro, ao ferreiro que vinha salvo erro dos lados da Igreja Nova e até tinha por lá umas peles de cabra a curtir... no estúdio improvisado fazia-se a emissão contínua que durou todo o dia, com entrevistas às pessoas envolvidas na organização e não só e assim se passou um dia muito interessante, não só no nível cultural mas também a nível radiofónico, eram outros tempos !

O entusiasmo que esta feira trás aos ferreirenses (e não só) é mais do que suficiente para que este passe a ser encarado como um grande acontecimento de Ferreira do Zêzere, devia ter lugar de destaque na promoção cultural do concelho e merecer uma divulgação a nível nacional (porque não?). A organização deveria conseguir manter a qualidade do certame e até se possível aumentar a fasquia, por exemplo colocando tendas em vez dos stands, criando iniciativas de animação de rua por toda a vila por como o teatro amador, animação pirotécnica, incentivo ao uso dos trajos rústicos da época, desfile de trajos, etc... para que os visitantes tenham sempre algo de novo para ver e se mantenha a mística desta feira que depois de ter andado desaparecida e de ter conseguido regressar, não volte a perder-se na memória dos tempos.
Mas é bonito ver esta mostra, faz-nos regressar ao passado, ao recente e ao longínquo, se bem que por vezes me ponho a pensar se não teremos ficado demasiado agarrados ao imaginário dos tempos dos nossos avós. Será que vamos conseguir deixar legados tão bonitos às gerações vindouras ? esperemos que sim... eu cá ainda tenho esperanças que um dia teremos quem ponha de pé a recriação da Feira de São Miguel ! "

14.2.06

O velho sótão


Ena... lancei o blog ontem e já tenho comentários, isso é muito bom :)

Faz-me lembrar a primeira vez que abri o microfone, no sotão do Azevedo, quando a rádio era feita com quase nada... uns pratos velhos, que o Carvalheira tinha arranjado que de vez em quando se "passavam" com o calor e faziam com que a voz do artista nem sempre saisse nas melhores condiçõõÕÕõõeeeeEeesss. Uns decks para as cassetes onde se passava a publicidade e quando o "artista" não podia ir, lá ficava a rodar em repeat a cassete nº 4, que rodava.... rodava... rodava... convenhamos que a selecção até nem era má!
Àh e o emissor ? pois... esse estava no sótão própriamente dito, lá a um canto em cima de uns tijolos lá ia comprindo a sua missão, não muito fácil nos dias quentes de verão... mas o que valia ainda era a ventoinha que sempre ligada e convenientemente direccionada para o equipamento de emissão lá garantia a estabilidade da coisa.... se bem que às vezes por "falta de terra" lá se ouvia uma zoada menos agradável, era aí que o Carvalheira aparecia a dizer para "regar o cabo"... sim, o cabo de cobre que estava enterrado lá ao fundo da escada e que afinal servia para fazer a "terra" à instalação...

Foi neste ambiente, de puro amadorismo e muita vontade, com a força que caracteriza a juventude, que a rádio se fazia... e quando o microfone se fechava ficavamos todos, radiantes e com o sentido de dever cumprido e aí só nos restava "abancar" no sofá velho e contar as proezas, as pequenas estórias que fizeram o Rádio Club do Zêzere.

Já agora... reconhecem o "artista" da foto ?

As minhas estórias

Olá, o meu nome é Rui Antunes... sim, aquele da Rádio que andava às vezes por aí feito E.T. com montes de cabos numa mão, malas com aparelhos esquisitos noutra, que abancava onde houvesse qualquer coisa a acontecer e de microfone na mão lá ia atrás das estórias, aquelas que se fazem todos os dias e cujos protagonistas somos todos nós.

Às vezes ainda me ponho a pensar... mas porque raio ia eu atrás das tais estórias, ainda por cima para as partilhar com os outros ?!?? soferei de algum género de insanidade mental que me empurrava para a busca desenfreada de tais acontecimentos ? bolas isso até podia ser perigoso, os malucos são perigosos... ainda por cima agora ninguém toca naqueles cabos, nem naquelas malas cheias de aparelhos esquisitos, porque será ? secalhar é medo de algum possível tipo de contágio, como a gripe das aves ou assim... é melhor nem pensar nisso!