Estórias de Ferreira

Chamo-me Rui Antunes, sou de Ferreira do Zêzere e gosto de estórias... reais ou imaginárias, estórias da vida, de sucessos ou insucessos, prometo partilhar as minhas, espero pelas vossas...

A minha foto
Nome:
Localização: Odivelas

22.2.06

José Sebastião




texto de Pedro Aniceto (primo)
http://caoepulgas.blogspot.com




José Sebastião. Mais um dos meus referenciais imaginários que se apaga numa já longa fila que a pouco e pouco me dá a consciência de que já estive mais longe do momento em que alguém me dedique umas linhas à laia de obituário. José Sebastião não morreu. Mas vive, se é que lhe podemos chamar viver, uma complicada e oxalá que não lúcida antecâmara entre o estar e o ter sido. José Sebastião nunca foi um amigo do peito. Separavam-nos nos momentos de maior possibilidade de convivência demasiados anos para que dele pudesse ser cúmplice. Mas foi-o, à sua maneira. Quando eu, de calções e camisas ridículas me abeirava do grupo de homens feitos que tibornavam caldas e mostos, e ainda demasiado jovem para poder fazer parte do ritual, e me dizia "Então Pedro, não bebes um copo?", mais do que um chiste era quem sabe um teste iniciático. Um teste, que passou muitas vezes pela tira de presunto ou pela fatia de queijo, muito antes do copo de vinho. José Sebastião. O homem que durante os meus tenros anos me impressionava pela terrível profissão que desempenhava, a de ser formalmente o coveiro da freguesia, está agora a pouco tempo de ser conduzido ao primário torrão. Dirão que é a lei da vida. Dirão que nada se pode fazer senão enfrentar com naturalidade a ordem natural das coisas. Uma merda! Ninguém merece um final agonizante como o que este homem é obrigado a sofrer. Ninguém. Muito menos o homem que me emprestou a sua preciosa Fundador, roda 26, para a qual eu tinha de subir do cimo de um cepo, sujeito a partir as ventas, e quem sabe
outras peças mais da sua preciosidade azul. Deixa-a no mesmo sítio. E o mesmo sítio incluia uma delicada operação de limpeza aos cromados, a verificação meticulosa da caixa de reparação de furos, que incluia dois "desmontas" um tubo de Tip Top e dois gloriosos remendos por estrear. Creio que te abri a caixa dos "desmontas" apenas uma vez, apenas para verificar a razão de tanto cuidado e carinho com uma bicicleta do tempo dos Afonsinhos. E mesmo quando um AVC te fez ficar imóvel, retido numa cama, mas sem te retirar do cérebro a capacidade de reconhecer os que te rodeavam, a pergunta foi sempre a mesma "Vais buscar a bicicleta para dar uma voltinha?". Os anos foram passando e nunca te esqueceste. Os anos foram-te mirrando e nunca me esqueceste. Há 6 meses, numa curta visita avisaram-me de que o cenário era o pior. Que não reconhecias ninguém. Que estavas francamente mal, confuso, ausente. Foi preciso apertar-te a mão, esperar largos segundos, olhar-te num olhar baço, o meu de emoção, o teu da névoa que te tolda a mente, para que sentisse no teu aperto a certeza de que sabias que era eu. O Pedro, o miúdo que cresceu e que deu lugar a outros miúdos. Um gemido, um esforço de fala entaramelada e ter-te ouvido, perante o espanto dos presentes, dizer em sussurro "Pedro, a bicicleta...". Sorrimos todos, até tu, penso eu. Hoje, ao entrar-te quarto adentro, na esperança de mais um pequeno milagre, não contive a angústia de ter ver e de me recordar de mais alguns que já partiram envoltos nas mesmas brumas. Alguns que foram teus amigos e que te esperam para outras tibornas e outros mostos, para outras perguntas de "Vai mais um copinho?". Hoje não consegui que reagisses, creio que nunca reagirás. Não que o queira crer. A existir um paraíso para ti que tenha bicicletas, com caixas de "desmontas" e remendos. E cola Tip Top. E miúdos a quem possas fazer a gentileza de ensinar que o que se empresta deve ser devolvido nas mesmas condições.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Pedro,

O José Sebastião conseguiu, até ás últimas, distinguir a minha voz e nunca se enganava. Quando eu o visitava e a Maria dos Anjos me dizia: " ele já está muito mal, já nem sabe se tu é o Sérgio ou o Ricardo..." e lá perguntava: "Ouve lá, ò José! Sabes que é este?" E ele, com muita dificuldade lá balbuciava: "...é o sérgio..."

Já agora, o José já não está entre nós, mas a sua esposa, Maria dos Anjos ainda está, e parece-me que não está no sítio onde mais gostaria de estar (mas isso são outras conversas).

Que tal um dia destes juntarmo-nos e passarmos um dia todos juntos nas Courelas, com a Maria dos Anjos e as poucas figuras que ainda restam da sua geração.

Deixo aqui o desafio. Isto para que daqui a algum tempo, não estejamos todos aqui a lamentar a perda de mais uma referência das nossas infâncias e a lamentar o pouco tempo que tivemos para conviver com eles.

sexta-feira, março 03, 2006 12:08:00 da manhã  

Enviar um comentário

<< Home