Estórias de Ferreira

Chamo-me Rui Antunes, sou de Ferreira do Zêzere e gosto de estórias... reais ou imaginárias, estórias da vida, de sucessos ou insucessos, prometo partilhar as minhas, espero pelas vossas...

A minha foto
Nome:
Localização: Odivelas

21.2.06

O Borda d'Água





Texto de Pedro Aniceto (primo) http://caoepulgas.blogspot.com













Comprei a edição 2004 do Borda d'Água. Peço aqueles que não fazem a mínima ideia do que seja esta publicação a santa paciência de me escusarem à explicação. Direi apenas que é uma das mais antigas publicações do país, e sem dúvida alguma, aquela que mais penetrou em camadas da população que muitas vezes nem sequer sabiam ler, ou se o sabiam, que o faziam com enorme dificuldade. O Borda d'Água é um Almanaque (começa a irritar-me esta coisa da etimologia árabe, principalmente desde que deparei com o Al Jareau...), dizia eu um Almanaque capaz de conter uma resenha essencial às mais singelas manobras que digam respeito à agricultura. Queres saber quando transplantar os agriões, fazer a cama quente aos pepinos, cavar as leiras de couve, armazenar forragem ou exterminar os caracõis? Compras o Borda d'Água e ficas a saber! Queres saber qual é o Santo do dia 13 de Novembro? Consultas o Almanaque. A que horas se põe o Sol no Porto num determinado dia? Idem.
Raramente necessitei dos seus sábios ensinamentos e mesmo quando issoaconteceu torneei as dificuldades com um telefonema a um "expert" agrícola. Precisava saber quando podar a minha cerejeira, que cresce há dois anos no meio do meu jardim. "Poda-a em Janeiro, mas não faças se estiver o tempo muito frio". Agora, quando desfolho o Almanaque não deixo de sorrir quando leio no mês de Janeiro, que é tempo de podar figueiras, macieiras e cerejeiras, mas que, no caso destas últimas, será melhor adiar a tarefa se o tempo se manifestar demasiado frio. Eu sabia que as hipóteses de o meu "expert" ter lido o Almanaque eram generosas, mas não tão grandes. O Borda d'Água acompanha-me desde que me lembro de mim mesmo. Era eu criança e era fatal que num dos primeiros Domingos do ano, aparecesse no adro da Igreja de Paio Mendes (Concelho de Ferreira do Zêzere) o habitual vendedor de Almanaques. A minha mãe, Fernanda, ou a minha tia Lourdes deviam estar, secretamente instruídas de comprar um exemplar , que guardavam ciosamente nas respectivas malas cujo conteúdo era, regra geral, um mistério para mim. (Aliás, ainda hoje me interrogo porque carregavam o ano todo uma caixinha de pó de arroz, quando nunca as vi usar tal produto...). Seja como for, o pó de arroz acrescentava ao interior das malas de senhora aquele cheiro tão especial que fazia do mistério uma aventura sensorial. Sacar, à socapa (sempre à socapa) um terço de contas pretas, de uma mala que cheirava a pó de arroz, borrifar-me com umas pingas de Água de Colónia, devia ser um desporto nacional naquela casa... O Borda d'Água vinha, como disse, ciosamente guardado até casa, onde era entregue ao meu avô, pessoa pouco dada a actividades de carácter religioso. Os momentos passados no adro da Igreja eram autênticos "blogs" sociais, onde se faziam anúncios de superior interesse comunitário, se finalizavam negócios de última hora, quase sempre selados com um aperto de mão e um copo de tinto na taberna próxima. Podiam mesmo apalavrar-se compras de adubos ou rações, era o Forum da aldeia, como aliás o é ainda hoje se colocarmos à devida proporção da época, a ausência de telefones e outros sofisticados meios de comunicação. Mas voltemos ao Almanaque e ao meu avô. Então, tal como hoje, o Borda d'Água não vinha acabado, isto é, os planos impressos, vinham singelamente dobrados em 4 e era ao leitor que cabia necessariamente a tarefa de acabar de cortar as páginas, o que sucedia imperativamente na mesa da cozinha, a mesma que, ainda hoje está recoberta daquilo que foi um linóleo centenário (talvez seja um exagero, mas não andará longe da verdade, como ainda há dias pude pessoalmente constatar...). Saía da sua bainha a "faca dos porcos", a faca mais afiada de que dispunha a casa do Olheiro, instrumento de matador de suínos, tarefa a que Joaquim Nunes se dedicava uma ou duas vezes por ano, dependendo do número de exemplares que pereciam na banca de madeira e que forneciam a arca do sal para o resto do ano. Um dia, se houver tempo e arte, falarei deste ritual, que, quase abandonado nos seus rituais, marcou dezenas de gerações de portugueses entre os quais me incluo humildemente, pois dele participei, com gosto, inúmeras vezes. Mas dizia eu que a "faca dos porcos", empunhada por mão firme, acabava de cortar as páginas do Borda d'Água para que finalmente pudesse ser desfolhado. Haveria de ser guardado sob a forma de um canudo, na grade da louça, que ainda hoje se impõe na velha cozinha das Courelas. Joaquim Nunes (Joaquim do Olheiro, para a generalidade das pessoas), não tinha propriamente um trato fácil. Teimoso como poucos (aliás, advém dele grande parte da herança genética familiar e não me parece que sejam necessárias grandes análises para me certificar disso mesmo...). Era habitual vê-lo a manifestar alguns acessos de fúria ou ocasional má disposição em afirmações lapidares como "Rai's te nunca partisse" ou o tradicional e escutado até à exaustão "Tá quêdo!". Recordo-me de ou ouvir barafustar sobre o preço de uma das edições, 5 tostões. Aos olhos da minha idade, o meu avô era rico. Lembro-me de ter pensado que de cada vez que lhe via abrir a carteira, no final das férias de Verão, para me presentear com uma azulíssima nota de 100 Escudos, não fazia sentido barafustar contra um preço de 5 tostões. Lembrei-me de Joaquim Nunes, quando estando eu em Oeiras, vi entrar no café de bairro o vendedor de Bordas d'Água e lhe pedi um. Quando perguntei o preço e me disseram "Um Euro e dez", quase ouvi Joaquim Nunes a barafustar de novo: "Rai's te nunca partisse".

13 Comments:

Blogger Rui Antunes said...

É verdade Pedro, o nosso avô tinha algumas expressões inconfundíveis: "Rai's te nunca partisse", "Tá quêdo!" e "Alma do Diabo"... muitas vezes, quando a traquinice era muita saiam as três frazes juntas : "Tá quêdo... Rai's te nunca partisse alma do diabo"

:)

terça-feira, fevereiro 21, 2006 8:07:00 da tarde  
Blogger Pedro Aniceto said...

Reli este texto, e macacos me mordam se ao descrever a venda do BA no adro, não "vejo" a Maria dos Anjos a estender "Amigos do Povo" aos paroquianos... (Vocês segurem-me!)

quarta-feira, fevereiro 22, 2006 12:19:00 da manhã  
Blogger Rui Antunes said...

Epá... no meu tempo quem vendia os "amigos do povo" era o Sr. Ramiro, um sr magrinho de óculos que morava entre os Soutos da Eira e as Besteiras.
Todos os domingos não falhava, lá estava o famoso jornal.

quarta-feira, fevereiro 22, 2006 7:09:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Bom dia... Amigos. É só para referir que até a distribuição desse jornal se perdeu, agora é colocado ao fundo da igreja em cima da pia baptismal, para quem quiser se servir. Um abraço a todos.

sexta-feira, fevereiro 24, 2006 11:38:00 da manhã  
Blogger Pedro Aniceto said...

Digam-me que "O Amigo do Povo" ainda tem aquele logo em letra tipo "Farwest"... ;)

sexta-feira, fevereiro 24, 2006 10:43:00 da tarde  
Blogger Pedro Aniceto said...

Rui, o Ramiro era um tipo que andava sempre colete preto? Que morava ali para as bandas das acácias da rua da Tia Aniceta?

sexta-feira, fevereiro 24, 2006 10:45:00 da tarde  
Blogger Pedro Aniceto said...

Uma ideia curiosa que me surgiu agora... A Freguesia de (ou da) Paio Mendes - um dia discutiremos isso - tem site? Devia ter uma galeria de cromos, só eu já anotei uns 15 nomes sobre os quais gostava de escrever, personagens inesquecíveis por muitas e variadas razões. Do inefável Acácio até às minhas sessões de aprendizagem dessa inimitável arte do assobio com o Miguel, na pedra da porta da tia do Olheiro. Ou das minhas "vias sacras" para levar o almoço ao meu primo Fernando Nunes que era pedreiro na construção da Via Sacra de Dornes, que de cada vez que concluiam e avançavam uma estação me faziam andar mais uns kilometros (e eu ia a pé, Santo Cristo!) - eu devo ter sido o primeiro penitente daquele conjunto religioso, não sei se me percebem -, ou de como aprendi a molhar formigueiros para ir às agúdias. Ou de como um tipo ser pequenino tem imensas desvantagens, nomeadamente caber nas vigias dos toneis para esfregar o sarro. Descamisadas, descaroladas e outras festividades de carácter erótico (era o que havia, era o que havia...). Até de como a Zundapp do teu pai e meu tio passou a ser uma visita frequente da casa e era encostada sempre, mas sempre na esquina da Casa do Forno até ao dia em que me disseram que ia haver um casamento e eu a perguntar-me na minha infantil ingenuidade, "Mas casar com quem?". Memórias, memórias da caminhada do aprender a distinguir um melro de um tordo, coisas do saber que fazem com que um tipo saiba distinguir com uma mordidela um tremoço prnto a comer de um outro mais amargo. Ou a extraordinária e sangrenta história da pedra do arame da corda da roupa da eira que me ia fazendo perder um dedo. Ou das histórias acidentais da primeira vez que manejei um malho, apesar de ter sido prevenido dezenas de vezes de que o não devia fazer, debalde claro está, que levei com o pau na moleirinha para não ser teimoso. Deve haver por aí uma arca de histórias prontas a escrever. Vamos a isso!

sexta-feira, fevereiro 24, 2006 11:01:00 da tarde  
Blogger Rui Antunes said...

Pedro, podes crer que há por ai montes de histórias para recordar, penso que Paio Mendes merece essa homenagem quanto mais não seja pelos momentos que nos proporcionou na nossa infância. Há realmente figuras que não se esquecem, o Sr Acácio era sem dúvida uma delas, marcou uma geração e foi sem dúvida o responsável por ainda hoje haver muita malta com origens nas Courelas que come feijões sem reclamar :)

segunda-feira, fevereiro 27, 2006 12:47:00 da manhã  
Blogger Rui Antunes said...

O Sr. Ramiro era um sr Magrinho de óculos que morava na primeira casa que se apanha do lado esquerdo quando se vem das Besteiras para Paio Mendes, na curva antes dos Soutos da Eira, vivia lá com a esposa (já faleceram ambos) e não tinham filhos, mas penso que não usava colete preto, isso já não posso garantir.

segunda-feira, fevereiro 27, 2006 12:50:00 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Ainda voltando ao Sr. Ramiro
Efectivamente ele já faleceu, mas a sua 2.ª esposa, tanto quanto sei ainda é viva e continua a viver na mesma casa a que se referem.
Cristina

sexta-feira, março 03, 2006 8:22:00 da tarde  
Blogger Rui Antunes said...

Se é viva não sei, mas quase de certeza que não mora lá... vou tirar isso a limpo com a Maria de Lourdes amanhã

sábado, março 04, 2006 12:07:00 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

é verdade mora lá, com o carlos sousa irmão do mola, que está casado com a filha mais velha do louvado.

sexta-feira, março 17, 2006 4:39:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Pois é por falar no " mola " chegou me aos ouvidos que ele ia para África , será verdade?

segunda-feira, maio 01, 2006 7:29:00 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home