Texto de Pedro Aniceto (primo)
Esta é uma história de terror, fica desde já prevenido o leitor para que se não venha queixar posteriormente. É a história de um homem que aterrorizou centenas de inocentes crianças e nunca foi preso, nem sequer uma vez interrogado pelas autoridades a respeito desta matéria. Esta é a história de um homem que já morreu mas cuja terrível memória está profundamente vincada no subconsciente de miúdos e graúdos (mais nestes últimos, entre os quais me perfilo) e dessa fama se nunca livrará, assim eu a saiba escrever com rigor e sentimento, sendo que deste último, o sentimento caso já se tenha esquecido do que acabou de ler, jamais se desvanecerá da minha mente enquanto eu conseguir sentar-me a uma mesa para comer. Sei que não estou só, sei que um exército de vítimas deste homem se escondem nas sombras do que não querem lembrar de novo, alguns já homens feitos que não vacilam (nem a tal se atrevem!) perante um prato a transbordar de ervilhas ou de outros vegetais não menos repugnantes.
O Acácio era um negociante de adubos e demais fertlizantes. Personagem rural, de enormes botas de cano em borracha negra, era facílimo cruzarmo-mos com ele em qualquer ponto da freguesia. Trajava de acordo com as
necessidades da sua profissão, com uma enorme capa de lona pelas costas ou com uma saca de sarapilheira em capuz que o protegia da chuva quando era época da mesma. Acácio tinha um facies hirsuto, que só desbastava aos
Domingos, dia em que se aprumava para os ofícios religiosos, apesar de nunca o ter contado entre os seres tementes a Deus. Pouco importa. Ver a sombra de Acácio a descer a rua era o suficiente para me colocar ao fresco rapidamente, mesmo que a personagem estivesse ainda demasiado longe. Uns óculos grossíssimos ajudavam a compor o conjunto da sua cara, encimada por uma sempre eterna bóina negra. O Acácio (Senhor Acácio quando alguém lhe dirigia a palavra), estava longe de ser popular entre a criançada da aldeia e quando dirigia a palavra à miudagem, e só o podia fazer áqueles que, por uma razão qualquer se não tivessem conseguido escapulir a tempo, gerava autênticas crises de choro e ataques graves de ansiedade. Falo por mim e tenho a certeza de que por todos os outros...
Sendo comerciante de adubos, numa aldeia onde os automóveis ou meios de carga motorizados se contavam pelos dedos da mão de um lançador de foguetes que tivesse perdido o treino, Acácio estava constantemente a transportar enormes sacos de 50 Klgs. de adubo (Foskamónio, para verem como nunca o esqueci), ajoujado ao peso, subindo e descendo ladeiras, sempre com a sua capa ou sarapilheira. Fugir da presença do Acácio era bastante mais simples nessas alturas por razões que são agora óbvias. Acácio percorria atalhos que conhecia como a palma das suas mãos e a maioria dos meus percursos pedestres era calculado de forma a evitar-lhe as rotas ou os caminhos prováveis da próxima entrega de adubos.
Todo este medo me foi incutido pela Maria Fernanda e Maria de Lourdes, minha mãe e minha tia respectivamente, e servia de arma perante as minhas
relutâncias em engolir feijões, couves ou saladas. Não era uma ameaça qualquer, ambas estas queridas criaturas se serviam do mesmo tema quando havia problemas à mesa.
"Não comes isso e eu chamo o Senhor Acácio!" era, digamos, a bomba atómica dos problemas de nutrição. Garfadas de comeres menos apetitosos eram manejadas com destreza, gorgomilos abaixo, colheres de sopa menos eleita entre os deliciosos líquidos que faziam (e que ainda hoje fazem, Deus lhes dê anos e anos de panelas de ferro!) desapareciam pelo esófago, fosse qual fosse a temperatura do menu.
Éramos constantemente avisados dos perigos que corríamos ao não comer tudo até à última migalha. Lembro-me muito bem da Maria de Lourdes de colher em riste na mesa da casa do meu avô, me informar com um ar absurdamente sério dos graves riscos que corria...
"Tu sabes o que é o Senhor Acácio leva dentro daqueles sacos?" Não me lembro de lhe ter respondido, nem ela esperava resposta porque ainda agora a minha desgraça se iniciava. "Aqueles sacos grandes e pesados vão cheios de meninos que não querem comer!". Devo ter pedido mais detalhes sobre o destino dos bojudos sacos e ouvi-os em absoluto medo. "Ele leva os sacos para Tomar e quando chega à ponte da Praça - quem conhece Tomar sabe com pormenores do que estou a falar - , atira o saco ao rio e os meninos morrem afogados!". (Tenho esta conversa tão presente, e eu devia ter uns cinco anos, que me recordo de ter argumentado que os meninos se livrariam dos sacos, nadando para terra). "Ele cose os sacos! Ele cose os sacos!".
Escusado será dizer que risquei de imediato o Acácio da minha lista de contactos sociais. Sei que tentei verificar a história, com imensos cuidados, perguntando à Mabília, visita regular das lides agrícolas do meu avô se o Acácio era mesmo o transportador de meninos de que tinha ouvido falar.
Deve ter sido o primeiro complot que me moveram... Toda a aldeia usava o mesmo subterfúgio, uma espécie de conspiração do terror. "Uiii! Tu tem cuidado, Pedro, olha que se não comes elas chamam o Acácio". Não me dei por vencido, fui indagando entre amigos e conhecidos e cheguei a provocar uma crise de choro no meu compincha Carlitos que apesar da sua deficência mental me parecia mais lúcido que eu. Parecia ser mesmo verdade e o melhor era não desafiar quem me mandava comer. (Um dia vi o Acácio coser a boca de um enorme saco de adubo, sentado à porta da sua casa e aí devo ter finalmente consolidado a gravidade da situação!).
O Acácio morreu há alguns anos. Que descanse em paz. No dia em que me comunicaram a sua morte, o meu primeiro pensamento não foi para a sua memória, foi para um prato de favas, prato que abomino para lá de qualquer descrição ainda hoje e que a lembrança do Acácio não me conseguirá fazer engolir alguma vez...